Belas não podem morrer
top of page

Belas não podem morrer

O que a morte de uma adolescente na periferia da Capital Federal ensina sobre a mentalidade desumanizante da cultura digital


(Por Jamila Gontijo, em Psicanálise dos Afetos)


São quase 6h da tarde e eu estou presa em um grande engarrafamento, no caminho de volta para casa. Ficar parada no trânsito é bastante comum na Brasília de hoje, mas algo inimaginável nos anos de 1990. Naquela época, quando eu era adolescente, podia atravessar livremente os "eixos de cima e de baixo", aquelas avenidas largas do Plano Piloto, que ficavam praticamente sem carros nos fins de semana ou em horários fora do rush. O termo "engarrafamento" só era praticável em uma peça de ficção. Comparar os fluxos do tráfego de hoje e do passado me levou para meus tempos de adolescência e meus dilemas existenciais, que não eram poucos: auto-imagem precária, inseguranças sobre como estabelecer relações afetivas, um desejo profundo de ser reconhecida e valorizada, o que gerava uma busca frenética por atender aos padrões estéticos apontados como de alto valor.


Minhas lembranças nostálgicas foram abruptamente interrompidas pela conversa da moça que pegou carona comigo quando eu saia do salão de beleza que ela trabalha. "Que bom que peguei carona com você, porque assim chego mais cedo em casa e converso com minha filha. Não é fácil ser mãe de adolescente. A minha filha de 14 anos ignora minhas mensagens, mas eu insisto em conversar com ela sobre tudo, sempre que posso" -diz a jovem mãe que fala enquanto remexe nas mensagens do celular.


A coincidência do assunto sobre adolescência bem na hora em que relembro meus tempos de alta de hormônios na Brasília sem trânsito me faz prestar bastante atenção no relato da minha passageira. Ela começa a me contar que no seu bairro, São Sebastião, houve uma grande comoção no ínicio da semana depois que uma jovem de 13 anos tirou a própria vida dentro de casa, no meio da tarde. O episódio trágico aconteceu quando ela estava em casa, cuidando dos dois irmãos mais novos. Uma realidade muito comum nas casas em que as mães e avós precisam deixar os filhos sozinhos para irem trabalhar. Na ausência das cuidadoras adultas, as crianças mais velhas assumem esse papel sem o menor amparo para as próprias necessidades e muito menos para atender as necessidades dos irmãos.


Ao me contar o caso, minha companheira de engarrafamento repete sistematicamente: "Uma menina tão bonita, não dá pra entender". "Ela era tão linda, como pode querer morrer?" - como se a beleza fosse uma espécie de antídoto ou trouxesse imunidade contra o sofrimento emocional. E o relato continua permeado destas frases de espanto: "Todo mundo disse que ela era muito meiga a bela, um amor de menina, então não consigo entender como é que ela fez o que fez" - em suas falas percebo que é autêntica a surpresa diante do fato de que uma mulher bela - ainda que em desenvolvimento - pudesse estar em sofrimento a ponto de tirar a própria vida. A passageira ainda me diz que a menina era "vítima de bullying" na escola e que também não consegue entender como uma mocinha bonita poderia ser alvo de chacota e perseguição na escola. O valor social daquela menina adolescente estava sendo medido o tempo todo muito mais por sua aparência do que por sua existência como filha, neta, estudante, mulher.


Diante da complexidade que o assunto traz eu fiquei ali apenas escutando o relato, por saber que no pequeno trecho que tínhamos a vencer naquele engarrafamento torturante eu não teria condições de debater a relatividade do conceito de belo. No meio do caos urbano daquele fim de tarde, com pessoas amontoadas nos ônibus lotados, outras de pé nas paradas lotadas, e ainda outras isoladas em seus automóveis, não sobrava espaço para refletir sobre a implacável mentalidade que domina as redes sociais e que estabelece que a beleza física, moldada pelo mais novo trend do momento, é o grande capital para o sujeito contemporâneo, fundado na ilusão do "parecer ser" em contraponto ao ser real, belo em suas imperfeições naturais.


A "busca" dentro e fora das ferramentas de busca dos navegadores de internet é por uma estética pós-humana, tão irreal quanto os filtros digitais que dão às fotos uma perfeição artificial impraticável na vida fora das redes. Já é difícil para as gerações mais velhas, cujos padrões estéticos e valores éticos nasceram antes da Era Digital, perceber o artificialismo dos atuais padrões de beleza e assim distinguir um modelo factível daquilo que é um padrão irreal. Para as gerações deste início de Século 21, a internet pauta estilos de vida e padrões de consumo e de estética. Por isso a distinção entre a beleza real, do espelho sem filtro, e a beleza digital, super sexualizada, se perde na ilusão da imagem digital retocada até perder sua natureza humana - que é falha.


Eu não conheço toda a história da menina adolescente que escolheu interromper a própria vida dentro de casa, na companhia de dois irmãos pequenos. Não sei os fatores de risco aos quais ela pode ter sido exposta, nem se ela estava sofrendo alguma violência doméstica, ou abuso, ou abandono emocional. Não tenho informação suficiente para apontar os motivos que a levaram a tomar a atitude mais extrema que alguém em sofrimento emocional pode tomar. Até porque nem sempre há motivações que possam ser racionalizadas.


O que eu sei, e testemunho diariamente nos meus pacientes adolescentes que fazem terapia comigo, é que os valores promovidos nas redes sociais são um grande vetor de piora da saúde emocional. A celebração da futilidade, a super valorização da beleza corporal, da eterna juventude que não pode apresentar o menor traço de amadurecimento, a glamourização (um termo bem internético) do consumismo e da lógica de mercado aplicada às relações humanas dominam o universo das redes sociais e pioram o já confuso quadro emocional dos adultos em formação. Os valores digitais - popularidade, consumismo, beleza e riqueza - aumentam o abismo entre a aparência e a realidade, fazendo com que o sujeito por trás da tela fique cada vez mais frustado. Não há como ser suficiente diante de um padrão irreal e profundamente narcísico.


Todo ser humano precisa ser visto, amado e se sentir pertencente. São necessidades vitais, instintivas para cada um de nós, mas que estão se tornando cada vez mais impraticáveis para a mentalidade online, onde likes e seguidores tomaram o lugar de relações afetivas reais, possíveis e imperfeitas como só podem ser. E os efeitos disso são tão tangíveis quanto o efeito devastador de um tsunami. Estamos vivendo uma epidemia de suicídios no mundo todo e esse quadro é um alerta urgente para repensarmos o impacto do universo digital e seus respectivos valores e práticas na saúde mental e emocional das novas gerações.


No Brasil, os casos de suicídio aumentaram 43% nos últimos dez anos, passando de 9.454, em 2010, para 13.523, em 2019. Entre os adolescentes, o aumento foi de 81%, indo de 3,5 suicídios por 100 mil adolescentes para 6,4. Nos casos em menores de 14 anos, houve um aumento de 113% na taxa de mortalidade por suicídios de 2010 a 2013, fazendo do suicídio a quarta causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos. Os dados alarmantes são da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), do Ministério da Saúde.


Estamos agora no início do mês de setembro, quando ocorre a campanha Setembro Amarelo, criada para alertar a sociedade sobre o auto índice de suicídio que atinge a população mundial. Precisamos, urgentemente, repensar o que estamos oferecendo às futuras gerações em termos afetivos e sociais e com isso tomar medidas individuais e coletivas para reverte este cenário.






bottom of page