Formação online integra esforço coletivo para preservar saúde dos jovens, como recomenda representante da Unicef em entrevista exclusiva para o Brasília News

O universo digital faz parte da realidade dos adolescentes e traz oportunidades e desafios
(Jamila Gontijo)
Como está a saúde mental dos adolescentes? Dados recentes são alarmantes: quase um em cada seis crianças e adolescentes entre 10 e 19 anos de idade no Brasil tem algum transtorno mental, ficando mais vulnerável à prática de automutilações, depressão e suicídio. As informações foram consolidadas no relatório da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) “Situação Mundial da Infância 2021”, e demonstram a realidade de muitas famílias brasileiras: a preocupação com a deterioração da saúde mental das crianças e jovens.
Um resposta estatística exata e abrangente não existe porque os dados públicos sobre este cenário são precários, mas não precisamos ir muito longe para dizer que não vai bem. Basta olhar ao redor, ouvir pais, mães, professores e quem trabalha com atendimento a adolescentes para constatar o aumento drástico nos níveis de adoecimento mental dos jovens em todo o mundo, e claro, aqui também na Capital Federal.
A pandemia, o excesso de exposição às redes sociais e a apreensão sobre os efeitos das mudanças climáticas são apenas alguns dos fatores de pressão sobre o frágil equilíbrio que sustenta o bem-estar dos adultos em formação, passando por mudanças corporais enquanto buscam entender qual é o seu lugar no mundo. Nunca foi um período fácil, mas agora a situação está ainda mais desafiadora.
Eu, que além de jornalista sou psicoterapeuta, recebo em meus atendimentos diversas adolescentes com o mesmo quadro: ansiedade alta, inseguranças com a autoimagem, falta de perspectiva sobre o futuro profissional, problemas de relacionamento, dificuldade de dialogar com os pais e o pior: a grande maioria chega por um alerta de sofrimento visível no corpo, que é a automutilação. Quando chegam a este ponto, os pais procuram atendimento especializado e então começamos um processo terapêutico para compreender o que está por trás deste cenário.
Sabemos que praticar exercícios, se alimentar bem, manter o contato com a natureza e desenvolver uma rede de contatos sociais, além de se engajar em atividades coletivas são maneiras de cultivar a saúde física e mental, mas a solução que parece tão simples não é tão fácil de se colocar em prática. É um esforço coletivo que precisa da articulação de pais, escola, amigos e uma rede especializada.
Curso online para Atenção Psicossocial da Fiocruz e Unicef abre inscrições gratuitas
Entidades como o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e a FioCruz, por exemplo, oferecem formação para quem integra essa rede de apoio, e a boa notícia é que o Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens acaba de abrir as inscrições, que podem ser feitas por aqui. O curso é gratuito e totalmente online, destinado a profissionais e trabalhadores que prestam atendimento a adolescentes e jovens em diversas áreas, especialmente da educação, saúde, assistência social, segurança pública, entre outros interessados na temática. A iniciativa é uma parceria do Unicef com a Fiocruz Mato Grosso do Sul para contribuir para a criação e o fortalecimento de Espaços de Cuidado voltados para o acolhimento de adolescentes e no atendimento de suas demandas psicossociais, sobretudo em situações de crise.
Em sintonia com o movimento de criar espaços de escuta para adolescentes, acontece nesta quinta 24 de outubro na Casa Adhara, espaço de bem-estar e Saúde Integrativa de Brasília, a primeira Roda de Conversas para Meninas Adolescentes, com o tema "Beleza e Autoestima na Era das Redes Sociais", um projeto que tem apoio do Brasília News. Os detalhes desta iniciativa podem ser conferidos nesta reportagem aqui.
O Brasília News, que tem o foco na qualidade de vida, entrevistou Gabriela Mora, Oficial de Desenvolvimento de Adolescentes do Unicef sobre o assunto. Gabriela nos contou que é a partir do esforço conjunto entre diversos atores sociais que podemos dar apoio aos adolescentes. A entrevista completa segue abaixo.
Entrevista Gabriela Mora, Oficial de Desenvolvimento de Adolescentes do UNICEF
Como podemos atuar para melhorar a saúde mental dos nossos jovens?
Estamos apostando que é possível trabalhar a prevenção fazendo com que atores do dia a dia tragam pra si a responsabilidade de escuta, como os professores, pais e rede entre pares (que são os próprios adolescentes). Quando o “bicho pega” eles procuram outros adolescentes. Os atores de referência na vida dos adolescentes, como são os professores na escola, conseguem perceber mudança de comportamento, se sofrem bullying. A escola é um ambiente fértil para trabalhar a prevenção. Mas tem ainda outros ambientes que a gente nem sempre se lembra, como o esporte, a cultura e o lazer.
Neste contexto podemos prevenir situações mais graves?
Muitos casos podem ser trabalhados no nível da prevenção através de escuta qualificada, uma escuta sem julgamento. As pessoas querem escutar para dar conselho, e a gente lembra das nossas experiências na nossa época, mas a situação mudou muito. O bullying não está mais entre quatro paredes. Está nas redes se for filmado, é mandado no WhatsApp e ganha uma dimensão muito maior. É muito desproporcional se compararmos às experiências das gerações anteriores.
Qual é o impacto do uso das redes?
Hoje em dia os adolescentes urbanos estão totalmente conectados. Mesmo que as plataformas colocam uma idade mínima de 13 anos, os adolescentes entram antes. O tempo de tela é uma preocupação, mas proibir tudo é desconsiderar que está todo mundo conectado. Adolescentes que não encontram acolhimento da família, é na internet que eles vão encontrar seus grupos. E os adolescentes estão em uma fase que precisam de orientação para garantir sua autonomia. Estão constituindo sua identidade e isso requer uma quebra, um rompimento com a família para haver uma identificação de quem são. Não encontrar espaços de pertencimento pode ser grave e gerar gatilhos.
O que o Unicef tem feito para promover a saúde mental dos adolescentes?
Por exemplo, nós reunimos um grupo de especialistas e criamos um canal de apoio em saúde mental chamado Pode falar. Este é um projeto que tem parceria com mais de 20 universidade brasileiras, e a ideia é fazer uma abordagem multidisciplinar. Por meio do celular eles podem falar com um robô, que se chama Ariel.
Se for necessário, os adolescentes também podem falar com atendentes que são treinados para fazer uma escuta sem julgamento. Então os adolescentes vão nomear seus sentimentos e entender qual é a sua rede de apoio. Às vezes aparecem casos sérios, como violência doméstica, abusou ou ideação suicida e então há um encaminhamento. Toda a conversa é anônima, sendo que 80% dos casos atendidos são de meninas.
Muitos dos casos que aparecem não são casos extemos. São de conflitos familiares, de relacionamentos abusivos e questões de conflitos geracionais ou dúvidas em relação ao futuro ou de insegurança econômica. São assuntos que a gente consegue conversar, e à medida que a pessoa vai falando, consegue identificar que caminhos ela consegue seguir dentro do seu contexto pessoal.
As meninas são mais vulneráveis aos problemas de saúde mental?
As meninas sofrem muito mais a pressão da sociedade para ter o corpo perfeito, para ter um comportamento de determinada maneira. Tem muita comparação com corpos “ideais”, além de vivermos em uma sociedade machista. As meninas tem uma série de sofrimentos emocionais que são muito característicos. Já os meninos não falam de sentimentos porque não são educados a não compartilhar o que sentem. Por que os meninos não chegam em um serviço destes? Com quem falam? E o que estão fazendo com o que sentem? Esta também é uma preocupação.
O uso das redes sociais é saudável ou prejudicial?
As duas coisas ao mesmo tempo e por isso é tão importante falar sobre regulação das redes. As redes trazem possiblidade de contato, de pertencimento de grupo afins e isso tem um lado positivo. Só que ao mesmo tempo essas redes são fonte de pressão para um corpo ideal e o uso dos filtros criam uma autoimagem que não é real. A gente nunca se olhou tanto e isso no adolescente é muito sério porque estão na fase de desenvolvimento, estão construindo a autoestima.
As redes vão trabalhando com tendências de comportamento humano e é um espaço que não cabe muita reflexão ou elaboração. Além disso é um espaço que trabalha com extremos, quanto mais extremo, mais engajamento. As redes não tem mediação, e aí as pessoas estão expostas a tudo. Se tem critica, tem impacto muito grande na autoestima. Não podemos ter uma abordagem moralista, mas precisamos ter uma abordagem responsável e sem ingenuidade.
Seria importante criar educação digital nas escolas?
A escola é um ambiente onde é possível aprender criticamente sobre as redes, ampliar o repertório e refletir. Pensar em atividades que mexam o corpo, que façam pensar e falar sobre tudo isso que acontece nas redes e estabelecer vínculos entre educadores e alunos, como pessoas. Também é possível a articulação com unidades básicas de saúde, ou trazer referências de esporte e cultura. A gente pode ir ampliando as redes de apoio para que os adolescentes também tenham protagonismo. Com isso, estamos reconhecendo que os adolescentes são capazes de ter senso crítico. Sem tirar a importância das redes especializadas, o que é fundamental, mas sozinhas não vão dar conta do problema.
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