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Casas de Shows em Brasília: falta de tradição ou visão?

Neste artigo, o músico, jazzista e diretor musical Oswaldo Amorim* reflete sobre as dificuldades da cena de shows na Capital Federal

Amorim em ação em dos poucos palcos musicais da cidade

Empreender em nosso país não é tarefa fácil. São inúmeros encargos tributários, trabalhistas, além dos impostos sobre qualquer produto comercializado. Além desse enorme gasto com tributos e impostos, soma-se a falta de incentivos fiscais para quem decide montar um negócio e juros impraticáveis para quem necessita de empréstimos. Porém, mesmo ciente de todas essas adversidades que o empresário enfrenta, quero abordar aqui outro fator que acho crucial para a manutenção e crescimento de qualquer empreendimento, a mentalidade e a visão do empresariado brasiliense. Não vou entrar em outras searas, mas sim na área que atuo, a música.


Sempre questionei por que Brasília, um “celeiro” de grandes músicos, praticamente não possui casas especializadas em música ao vivo. Quando digo especializada, me refiro a música ser o carro-chefe e esse estabelecimento ter estrutura compatível para a performance musical. No entanto, o que vemos em Brasilia, na grande maioria dos casos, são arremedos de casas de shows. Afirmo isso com conhecimento pleno de causa, pois raros são os espaços na capital federal que possuem uma boa estrutura para shows. A realidade é dura para os músicos locais, pois além da grande maioria dessas casas sequer dispor de sonorização, iluminação, tratamento acústico, técnicos de som e equipamentos de palco, isso quando temos um palco, ainda esbarramos com a mentalidade imediatista e tacanha da maioria do empresariado Brasiliense. Claro que temos alguns espaços especializados, mas ao longo de seus 63 anos quantas casas existiram e continuam ativas ao longo dessa história? Essa realidade sempre foi um contrassenso para mim, principalmente por vivermos na capital do país.


Apesar de inúmeros espaços para música ao vivo que foram criados ao longo desses anos, a maioria, ou quase a totalidade desses espaços fecharam ou faliram. Essa triste realidade sempre me fez questionar o porquê disso. Apesar de atuar como músico profissional desde 1990, ano que cheguei em Brasília, de lá para cá pouca coisa mudou no tocante ao cenário musical de Brasília, para não dizer aqui que regredimos e muito. De capital do rock, do choro, da música instrumental, passamos a ser a capital do silêncio. Sim, desde a absurda Lei do Silêncio, criada em 2008, que piorou e muito o que já era precário. Da noite para o dia a intolerância com a música tomou conta da nossa Cidade. Com tolerância de apenas 50 decibéis no período das 20h as 22h, a música tornou-se grande vilã do sossego e passou a ser considerada barulho. Sei que excessos ocorriam e podem ocorrer, e devem ser evitados e sanados, porém não foi oferecido pelo governo uma política de incentivo para isolamento acústico para as casas com música ao vivo ou um estudo sério sobre os níveis aceitáveis ou não de decibéis decorrente de uma apresentação musical. Na maioria das vezes, a conversa dos bares e restaurantes supera e muito o nível gerado pela música ao vivo. Um carro com o som ligado embaixo do Bloco, o caminhão de lixo, as máquinas que cortam grama, um secador de cabelo do apartamento ao lado, ou seja, tudo isso é tolerável, mas a música não. Vou deixar esse relevante assunto para uma outra matéria, apenas trouxe esse tema para salientar que muitas casas que tinham música ao vivo foram obrigadas a fechar após essa absurda Lei, criada sem um estudo sério sobre seu impacto na vida dos músicos e de toda a cadeia musical envolvida.


Em Nova York, cidade que morei e atuei profissionalmente por 5 anos, são incontáveis as casas de shows existentes e completamente equipadas, inclusive com pianos acústicos e/ou digitais, set de bateria e técnico de som. Já em Brasília, a exceção de alguns espaços, o que temos na maioria dos casos são puxadinhos para música ao vivo. Aqui, quando temos um palco, não temos mesa de som, retornos, microfones, pedestais, amplificadores, técnico de som e etc. Bateria e piano então, um sonho…


Conforme abordei anteriormente, sei que são inúmeros desafios e obstáculos para empreender nesse país, mas enxergo problemas que vão muito além do financeiro: a mentalidade e a visão imediatista de grande parte do nosso empresariado; a falta de uma identidade musical; a falta de compromisso em criar um público e de fidelizar esse público; a falta de visão a médio e longo prazo, sem o foco apenas do retorno imediato, mas sim com o objetivo de crescer e se solidificar, de se tornar referência, de criar uma tradição. Infelizmente o que vemos são casas feitas para durar dois anos e depois fazer uma reforma de fachada e transformá-la em outra que possa virar a “novidade” do momento.


Infelizmente, o que constatamos na grande maioria do nosso empresariado local, é uma total falta de preocupação em criar um público, uma identidade musical, de transformar esse ou aquele espaço em referência para determinado estilo musical. Aqui a maioria do empresariado enxerga a música apenas como um meio de aumentar seu faturamento, nada contra o lucro, mas e o valor que esse ou aquele músico agrega para a casa? O artista musical nessa cidade tem que ser além de músico, produtor, divulgador, programador visual e o responsável por encher a casa. Pergunto, o que essas casas oferecem em troca? Respondo: a maioria 80% do couvert, o que algumas vezes não paga o custo da realização do show, pois o músico tem que estudar sua parte, aprender o repertório, tem que ensaiar com os outros membros da banda, tem que gastar tempo preparando material de divulgação e postando nas mídias digitais, tem que passar o som e montar seu equipamento antes da apresentação. Tudo isso para muitas vezes para ganhar R$200. Isso não paga nem a gasolina e o aluguel do Estúdio para ensaio, muito menos o tempo dedicado aquele show. Pouquíssimos estabelecimentos possuem uma assessoria de imprensa especializada, uma equipe de marketing e criação visual (mídias sociais, flyers, banners, fotos e vídeos, etc). Ou seja, não existe parceria na maioria dos casos. A casa entra apenas com o espaço e o restante é responsabilidade dos músicos. Se o local não encher, a culpa é do músico, nunca da falta de estrutura da casa, da falta de divulgação, mailing digital ou de tradição da mesma.


Para dar um exemplo sobre a importância de criar um nome, de se tornar referência e do retorno que esse investimento gera, a maioria das pessoas que frequentam o Village Vanguard, Birdland, Blue Note, Smalls, Iridium, Zinc Bar, Dizzi’s, só para citar alguns estabelecimentos de Nova York, vão sem sequer saber qual a programação daquele dia, pois sabem que naquele espaço terá música e músicos de qualidade. Toquei por 4 anos quase todos os Sábados e as vezes aos Domingos no Zinc Bar, em Nova York. A Casa funcionava apenas a noite, com música ao vivo todos os dias da semana. Detalhe curioso, não serviam nada de comida, exceto amendoim. Lotado todos os dias, todos os 3 Sets. Criar essa identidade e fidelizar esse público não foi da noite para o dia, leva meses e as vezes anos. Nova York possui casas de shows centenárias. Muitas com mais de 60 anos, a idade de Brasília. Aqui seguimos na contramão.


Produzi algumas casas na cidade e sempre esbarrei nessa falta de visão por parte dos donos e gerentes em criar e fidelizar esse público, em se tornar referência, investir em qualidade, em valorizar a música e os músicos, investir em estrutura para a música ao vivo. Qual a casa de shows que conta com um piano em Brasília? Podemos contar nos dedos, incluindo os Teatros da Cidade. Falando em Teatro, estamos sem o complexo do Teatro Nacional, que abrigava a Sala Villa Lobos, Sala Martins Pena, Sala Alberto Nepomuceno, além do Foyer da entrada principal e das salas de ensaios no anexo do Teatro. Uma tragédia cultural que se arrasta por quase 10 anos.


O que mais me entristece é saber que Brasília possui esse público exigente e músicos extremamente qualificados. Exportamos grandes nomes da música para o Brasil e o mundo. A Escola de Música de Brasília é um celeiro de grandes músicos desde sua criação pelo Maestro Levino de Alcântara em 1974. A Escola de Choro Raphael Rabello, no Clube do Choro, veio aumentar e fomentar ainda mais essa musicalidade pulsante na capital do país. Padecemos de espaços devidamente equipados e voltados para a performance musical. Padecemos de governantes que priorizem a Cultura e que invistam e fomentem a produção cultural. Padecemos de empresários que vislumbrem não apenas o retorno imediato, mas que invistam em criar uma identidade musical, em deixar um legado, em criar espaços que se tornem referências de boa música, em valorizar a arte e os artistas. Enfim, torço para que possamos mudar essa mentalidade e modificarmos essa triste realidade.


Alimento um sonho e luto constantemente por sua realização. Sonho em vivermos um Renascimento Cultural em nossa cidade. Parodiando Chico Buarque:

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal

Ainda vai tornar-se um imenso Centro Cultural.


(Este artigo foi publicado originalmente na 12a. Edição da Revista 15.37 - abril/maio de 2023, que pode ser acessada aqui: www. paraboloide.com)


***Oswaldo Amorim é músico, compositor, diretor musical, Mestre em Jazz Performance, pela Manhattan School of Music (NY-USA) e professor efetivo da Escola de Música de Brasília desde 2003.

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